Parecer
ao Projecto de Decreto-Lei da Entidade Reguladora da Saúde
Na sequência do envio
do projecto de diploma que cria a Entidade Reguladora
da Saúde (ERS), com pedido de contributos, a FNAM
vem transmitir a sua apreciação.
I. Apreciação
geral
As questões relativas
à teoria da regulação têm sido
abordadas ao longo de décadas, existindo múltiplas
e elucidativas experiências em vários países.
Os mecanismos regulatórios
tiveram o seu apogeu a partir da década de 30 do
século passado e dos acordos de Bretton-Woods.
A partir da década de 70, e com o abandono da conversão
do dólar em ouro, passou a verificar-se um clima
económico baseado na generalizada especulação
financeira, e uma tendência, mais acentuada na década
de 90, para a “desorganização / desregulação”
expressa pela chamada recessão pós-especulação,
bem como pela clara estagnação económica.
Neste contexto, têm
sido definidas políticas globais, através
do Banco Mundial e, mais recentemente, da Organização
Mundial do Comércio, em que os seus objectivos
são óbvios e visam a desregulamentação
dos mercados e das economias e a abertura dos serviços
públicos à apropriação directa
por grandes consórcios multinacionais.
Assim, a criação
do “Acordo Multilateral de Investimentos” constitui um
instrumento central de absolutização dos
direitos dos investidores estrangeiros e de abdicação
do exercício da soberania por parte dos Estados.
É elucidativo o
silêncio a que este acordo tem sido submetido pelos
governos e pela própria imprensa.
As entidades reguladoras
têm sofrido as consequências das decisões
políticas nacionais e globais, com um acréscimo
substancial de exemplos em que as suas funções
e objectivos teóricos são completamente
subvertidos e em que a sua acção prática
tem sido transformada num complemento importante das políticas
privatizadoras dos serviços públicos.
A regulação
é então um instrumento de um só sentido:
o de facilitar e implementar melhores negócios
para as corporações multinacionais.
Mesmo as entidades de criação
mais recente, não têm escapado a esta lógica
e abundam os exemplos em vários países da
sua imediata captura por lóbis poderosos, que passam
a influenciar decisivamente as decisões em seu
proveito directo.
Em muitos casos, estas
entidades têm sido utilizadas pelos governos para
os proteger, política e socialmente, das consequências
nefastas das políticas anti-sociais, através
de uma capa tecnocrática e despolitizada.
Numa recente edição
do gabinete de estudos do Ministério da Economia
(Junho de 2003) com o título “Poder de mercado
e regulação nas indústrias de rede”,
o seu autor, Victor Marques, afirma que “aceitando-se
que o Estado é um dado endógeno ao processo
concorrencial, não é difícil imaginar
que as motivações políticas dos governantes
influenciem este mesmo processo concorrencial. Tal foi
o caso do processo de liberalização, através
das privatizações e da desregulamentação,
que ocorreu na maior parte dos países ocidentais,
desde o final dos anos 70. As privatizações
tiveram como finalidade acabar com as ineficiências
já referidas, subsequentes à gestão
pública, mas também tiveram como objectivo,
especificamente nos anos 80 no Reino Unido, diminuir a
força de certos sectores da sociedade civil, como
os sindicatos.... A actual regulação económica
surgiu à posteriori, como suporte às motivações
políticas que dinamizaram o processo de liberalização
económica” (página 86).
Afirma ainda, na página
seguinte, que “O principal desafio das entidades reguladoras
era (e ainda o é actualmente) garantir os preços
mais eficientes possíveis, em termos de afectação
de recursos, permitindo, contudo, que as empresas sejam
suficientemente rentáveis para remunerar de forma
justa os seus investimentos. Estas agências adoptaram
então mecanismos de regulação baseados
nos custos das empresas. As empresas poderiam adoptar
preços que cobrissem os custos aceites pela entidade
reguladora, por serem necessários ao fornecimento
de serviços, a um nível suficiente para
obterem a remuneração justa dos investimentos
necessários para o fornecimento dos serviços
objectos da regulação. Para além
da regulação dos preços, estas agências
impunham várias obrigações, como
a obrigatoriedade das empresas em terem capacidade suficiente
para fornecerem todos os clientes das áreas das
suas respectivas licenças, com um nível
mínimo de qualidade garantida”.
Estas transcrições
são de extrema importância na adequada compreensão
e abordagem desta matéria.
O próprio
Ministro da Saúde, numa entrevista recente
(D.N., 19/7/2003), afirmou que “A entidade reguladora
será independente e terá como principais
atribuições três vectores: assegurar
o acesso e equidade à prestação dos
cuidados de saúde; garantir a qualidade dos serviços;
e garantir a segurança e defesa dos utentes”.
Ora, o conteúdo
do projecto de diploma contraria a focalização
nesses 3 vectores, dado que aquilo que se encontra no
articulado é, sobretudo, um outro âmbito
de cariz marcadamente político e administrativo.
Assim, há que partir
da experiência conhecida nesta campo para que não
se reeditem fórmulas perversas e sabotadoras da
regulação como princípio.
As nossas apreciações
gerais assentam em exemplos concretos e insusceptíveis
de qualquer contra-argumentação fundamentada.
Em 1992, a Comissão
Federal do Comércio dos E.U.A., que é
a entidade reguladora deste sector, ilegalizou o código
ético da Associação Médica
Americana, considerando-o uma inadmissível restrição
ao comércio. E proibiu esta associação
e os seus filiados de desencorajarem os médicos
a aceitarem disposições contratuais que
violem a ética profissional, sob pena de processos
judiciais.
Outra entidade reguladora
deste país, a Comissão Federal das Comunicações,
presidida pelo filho do secretário de estado Colin
Powell, tem vindo a desenvolver uma intensa actividade
com vista à reconstituição acelerada
de grandes monopólios na comunicação
social.
Os escândalos
financeiros da Enrom e da WorlCan mostram uma
cumplicidade chocante das entidades reguladoras deste
país para com as fraudes praticadas durante vários
anos, em íntima colaboração com empresas
de consultadoria. Todavia, vai-se aprendendo com os erros,
e nos EUA, a nova Lei de reforma da gestão das
empresas, a Lei Sarbanes-Oxley, aprovado em Congresso
dos Estados Unidos no final de Julho de 2002, na sequência
dos escândalos já referenciados, onde a referida
Lei constitui a mais extensiva iniciativa regulatória
da governação das empresas, onde a preocupação
central da referida Lei é a total garantia da independência
da auditoria das contas das empresas.
Na Grã-Bretanha,
a experiência da entidade reguladora das PFIs, PPPs
e, mais recentemente, dos “Hospital-Foundation”, o Treasury
Task Force, é tão elucidativa que até
foi privatizada o ano passado.
No Brasil,
são conhecidos os processos polémicos em
tornos das rádios, com o encerramento arbitrário
de rádios locais e o favorecimento de grandes grupos
económicos, bem como os substanciais aumentos das
tarifas telefónicas. A nível da energia,
são também conhecidos os célebres
“apagões” no Brasil e Argentina que serviram para
as poucas empresas operadoras, multinacionais, poderem
impor aumentos das tarifas acima dos 30%.
Simultaneamente, importa
ter em conta experiências específicas
na saúde que, ao contrário do que
afirma o texto do projecto de diploma, se traduzem por
uma actividade importante e positiva, dentro dos tais
“vectores” teóricos referidos pelo Ministro da
Saúde na citada entrevista.
Tais são os casos
da ANAES (Agence National de Acreditation
e Evaluation de la Santé) e da CCHSA
(Canadian Council on Health Services Accreditation), respectivamente
na França e Canadá, que
são entidades únicas nos seus países.
A regulação,
por si só, não é nenhuma solução
mágica para a resolução dos problemas
com que se defrontam os serviços de saúde,
nem constitui nenhuma garantia acrescida para concretizar
uma política ao serviço efectivo dos cidadãos.
A questão essencial
é o modelo a adoptar, sendo certo que torna indispensável
e até vital, contrariar a tendência manifesta
do Ministério da Saúde para importar soluções
que já se encontram falidas e têm sido objecto
de grande contestação social na Grã-Bretanha,
com um número crescente de deputados britânicos
a exigirem alterações de fundo nessa política.
Veja –se o tema Entidade
Reguladora e o Parlamento:
1. Nos EUA,
onde a figura das entidades reguladoras independentes
teve origem, está devidamente assegurado um significativo
controlo do Congresso sobre as mesmas.
Para começar, elas são criadas por
Lei do Congresso, que lhe define missão bem como
os seus poderes regulamentares, poderes de decisão
concreta e poderes sancionatórios. Depois,
embora a nomeação dos membros das agências
reguladoras pertença ao Presidente – como chefe
do governo que é, tratando-se de um regime presidencialista
-, a escolha presidencial tem de merecer o assentimento
do Senado, depois de uma apresentação do
próprio indigitado, como sucede com a generalidade
das nomeações presidenciais de altos cargos
públicos, desde os membros do Governo até
aos juízes do Supremo Tribunal. Por último,
as agências reguladoras estão obrigadas a
reportar regularmente ao Congresso, incluindo a comparência
dos seus membros perante as suas comissões especializadas
permanentes.
2. Na Europa,
visto tratar-se em geral de países com formas de
Governo Parlamentar, a independência das autoridades
reguladoras em relação aos Governos é
“contrabalançada” por uma especial ligação
aos próprios parlamentos, com recurso
a mecanismos idênticos ou afins dos desenvolvidos
nos EUA. Por exemplo na Itália,
chega-se ao ponto de atribuir ao Parlamento a própria
designação dos membros das entidades reguladoras.
3. Entre nós, as
ER existentes, vivem quase totalmente à
margem do Parlamento, tendo mesmo sido uma das
grandes críticas feitas por várias personalidades
e especialistas na matéria, entre eles, o Professor
Vital Moreira, que no Projecto de Lei-Quadro
das ER que elaborou em 2002, a pedido do Governo anterior,
fez questão de sublinhar a importância da
ligação entre as ER e a Assembleia da República.
Propôs mesmo quatro possíveis soluções:
3.1. As ER´s deviam
ser criadas por Lei da Assembleia da República;
3.2. Na escolha dos mesmos,
exigia que o Ministro competente apresentasse previamente
o nome do indigitado à Comissão Parlamentar
competente justificando a sua escolha, de modo a permitir
a essa Comissão tomar uma posição
sobre a nomeação de tal personalidade;
3.3. Previa que as entidades
Reguladoras passassem a enviar obrigatoriamente um relatório
anual da sua actividade reguladora à Comissão
parlamentar correspondente;
3.4. Estipulava que os
presidentes das ER´s comparecessem sempre que necessário
perante as mesmas Comissões para darem
conta da sua actividade.
O conteúdo deste
projecto de diploma, como adiante se demonstrará,
não possibilita concretizar um modelo rigoroso
e independente de regulação da saúde,
antes surgindo claramente inserido na mesma lógica
de prolongamento tentacular da actividade político-partidária
da tutela, visto que o princípio basilar, que é
a regulação independente do poder político
e face aos operadores não está devidamente
consignada neste projecto do Ministério da Saúde.
II. Apreciação
ao articulado do projecto
1. No n.º2 do artigo
"Objecto", é definido que a ERS "pode
ser chamada a colaborar também na formulação
das políticas para o sector e da respectiva legislação”.
Trata-se, em nossa opinião,
de um primeiro afloramento que suscita dúvidas
quanto à efectiva independência desta entidade.
2. No ponto 2.2., são
curiosas e elucidativas as considerações
contidas nas várias alíneas, dado que apontam
para um claro e prévio plano privatizador que coloca
directamente em causa a acção reguladora
entre os diferentes modos de prestação dos
cuidados de saúde. A não ser que o objectivo
último seja regular somente o sector privado, tornado,
entretanto, hegemónico na área da saúde.
3. Na página 5,
a seguir ao artigo "Princípio da especialidade",
surgem no texto explicativo várias palavras inglesas,
características da respectiva reforma privatizadora
empreendida por M. Tatcher.
Por exemplo, porque razão
se utilizou a palavra "stokholder" e não
a palavra portuguesa accionista? Será para encobrir
a privatização futura dos "hospitais
empresarialmente independentes”, como lhe chamam no texto?
4.Na página 6, no
início do texto, uma das alíneas caracterizadoras
da "reforma do sistema de regulação
e supervisão" afirma o princípio da
"separação do Estado como regulador
e supervisor, em relação às suas
função de operador e de financiador, mediante
a criação de um organismo regulador dedicado".
Ora, estamos perante a
enunciação de um princípio nuclear
que, norteou, a integral privatização da
saúde nos E.U.A., há várias décadas
atrás, e tem norteado a política privatizadora
dos serviços públicos de saúde na
Grã-Bretanha.
5.Na mesma página
6, ponto 3.1., é afirmado que "não
são conhecidos exemplos de entidades reguladoras
dedicadas para o sector da saúde".
O facto dos autores do
projecto não os conhecerem não implica que
não existam.
Já anteriormente
referimos os casos da França e do Canadá,
havendo ainda um exemplo semelhante na Austrália
e até o caso elucidativo do "Treasury Task
Force" britânico.
No entanto, esta afirmação
coloca uma questão preocupante quanto ao grau de
estudo e conhecimento prévios da especificidade
das experiências na área da saúde
para proceder à elaboração deste
projecto.
Aliás, na página
7, 2.º parágrafo, é esclarecedor que
seja referido como exemplo inspirador para a regulação
da saúde o Banco de Portugal e CMVM, como se a
prestação de cuidados de saúde se
confundisse com a Bolsa ou fosse uma mera mercadoria sujeita
a especulação financeira.
6.Nesta mesma página,
são definidos os princípios deste tipo de
modelo de entidade, nomeadamente, na alínea b),
"a independência orgânica do órgão
regulador, cujos membros devem ter um mandato relativamente
longo e não devem poder ser destituídos,
salvo por falta grave".
É esclarecedor,
mas também chocante, que num estado republicano,
democrático e de direito se pretendam constituir
entidades "monárquicas", eternizadas
no poder.
O que são "faltas
graves"? Quem estipula a gravidade objectiva das
faltas?
E quanto à independência,
são igualmente esclarecedoras a última linha
da página 7 e as 2 primeiras da página 8,
quando é feita a "confissão" de
que "A independência é obviamente uma
questão de grau. Pode ser maior ou menor. A opção
por uma autoridade reguladora independente, bem como a
afinação do grau de independência,
são obviamente questões essencialmente políticas".
Torna-se, como tal, imprescindível,
que se clarifique qual o tipo de independência e
em relação a quem. Os artigos que surgem
nas páginas 8 e 9 limitam-se a consagrar as considerações
prévias já referidas.
7.O ponto 4.1, na página
9, começa por definir os aspectos essenciais da
missão da entidade reguladora, “nomeadamente a
garantia dos direitos dos utentes, a observância
das regras do “mercado” e da concorrência, os padrões
de qualidade e da segurança”.
Tratam-se de aspectos que
consideramos consensuais e que merecem a nossa concordância
genérica. Só que, a leitura posterior do
projecto permite verificar que, afinal, estamos perante
uma estrutura diferente no seu âmbito de intervenção.
8.O artigo “Objectivos
da regulação”, na alínea a) do ponto
n.º 1, estabelece que cabe à ERS “assegurar
o direito de acesso universal e igual a todas as pessoas
ao serviço público de saúde”.
Trata-se de uma redacção
que exclui a expressão “tendencialmente gratuito”
deste direito, colocando questões de ostensivo
desrespeito do texto constitucional e que apontam para
um futuro de pagamento directo dos cuidados de saúde.
A alínea c) do ponto
n.º 2 afirma que um dos objectivos é “Prevenir
e combater as práticas de indução
artificial da procura de cuidados de saúde”.
Como é possível
garantir este objectivo? Quem possui formação
específica, para além dos médicos,
para avaliar o fundamento de qualquer indução
artificial? São os 3 administradores previstos
para a E.R.S.?
9.Registamos a redacção
da alínea a) do ponto n.º 2, do artigo “Atribuições”
que estabelece a “defesa dos interesses dos utentes”.
Na alínea c) deste
ponto, é referida outra atribuição
que é “promover a competitividade entre os operadores”,
o que constitui para nós motivo de grande surpresa.
Será que o papel da ERS é sobrepor-se às
empresas e assumir decisões deste tipo? Ora, a
ERS tem de regular a competitividade e não promovê-la.
No artigo “Poderes regulamentares”,
verificamos que a alínea c) estabelece “homologar
códigos de conduta, manuais de boas práticas
e cartas de direitos dos utentes dos estabelecimentos
de saúde”.
Desde logo, no que se refere
aos médicos e enfermeiros, estamos perante uma
clara e ilegal intromissão nas competências
específicas das respectivas Ordens, que conduziriam
ao seu esvaziamento e inoperacionalidade.
10.No artigo “Cooperação
com outras entidades”está consagrada a possibilidade
de a ERS “estabelecer formas de cooperação
ou associação com outras entidades de direito
público ou privado”.
Trata-se de uma redacção
vaga que permite a inevitável reprodução
dos escândalos que têm envolvido conhecidas
firmas multinacionais de consultadoria e contabilidade,
nomeadamente na Grã-Bretanha e E.U.A., tanto mais
que estabelece formas de cooperação ou associação.
Ora, isto coloca uma questão
de fundo: as empresas que cooperarem ou estiverem associadas
à ERS ficam inibidas de trabalhar para outras entidades
privadas com interesses no sector da saúde?
Pensamos que o projecto
deveria clarificar integralmente esta questão,
tanto mais que o seu texto, mais adiante (pag. 26), estabelece
a perspectiva de “uma entidade reguladora o mais leve
e ágil possível, sem a sobrecarga de serviços
próprios muito pesados”.
11.No artigo “Poderes sancionatórios”,
alínea c) do ponto 2, é estabelecida a possibilidade
da ERS propor “A dissolução de órgãos
de administração de operadores públicos
dos serviços de saúde do S.N.S., bem como
a destituição de membros desses órgãos
ou de órgãos de direcção técnica”.
Consideramos tratar-se
de um poder abusivo e conflituante com as atribuições
da tutela ministerial.
A E.R.S. é
uma entidade reguladora ou um novo Ministério?
12.No artigo “Procedimento
regulamentar”, o seu ponto n.º 2 confere à
E.R.S. poderes negociais com os chamados “interessados”.
Será que uma entidade
desta natureza deve possuir atribuições
deste tipo?
Consideramos tratar-se,
de novo, de um poder abusivo e não admissível
para esta entidade.
13.O artigo “Sanções
e medidas pecuniárias compulsórias” estabelece
que “a ERS pode punir as infracções às
leis, regulamentos... com coimas definidas nos termos
deste diploma, as quais poderão duplicar em caso
de reincidência nos 5 anos seguintes”.
O artigo seguinte, “Procedimentos
sancionatórios”, estabelece que estes procedimentos
“respeitam o princípio da audiência e defesa
dos interessados, do contraditório e demais princípios
constantes do CPA e, quando for caso disso, do regime
geral dos ilícitos de mera ordenação
social”.
Consideramos surpreendente
esta nova invasão da ERS por terrenos do foro judicial.
A ERS mais parece um tribunal
do que uma entidade reguladora.
14. O artigo “Âmbito
da jurisdição da ERS” limita a sua acção
ao Continente, deixando de fora, inexplicavelmente, as
Regiões Autónomas .
Estamos perante novo caso
de “off-shores”?
15.Os artigos que definem
os órgãos da ERS colocam algumas questões
delicadas.
Desde logo, constatamos
que está criada uma reedição da linha
de comando político-partidário que tem imperado
no Ministério da Saúde e que tem consagrado
o comissariado político.
Assim, o Conselho de Ministros
nomeará os 3 elementos do conselho directivo por
proposta do Ministro e estes propõem o “provedor
do utente” e todos os membros do conselho consultivo que,
por sua vez, acabam novamente na nomeação
do Ministro.
Trata-se de uma situação
escandalosa, em que a apregoada independência da
ERS não passa de uma farsa política desastrada.
16.Consideramos inaceitável
que a nomeação do presidente do conselho
directivo se faça por períodos de 5 anos.
Trata-se de uma eternização
de funções que não encontra qualquer
justificação fundamentada.
Outro aspecto caricato,
é a nomeação inicial dos vogais do
conselho directivo se referirem a períodos de 2
e 3 anos.
17.Quanto ao artigo "Incompatibilidades
e impedimentos" é estabelecido o período
de 2 anos.
Consideramos preocupante
este curto período, que não permite também
acautelar a independência e os conflitos de interesses.
Na França e no Canadá
este período é de 5 anos e a legislação
aprovada no final do ano passado nos E.U.A. estabelece
8 anos.
18.Consideramos positiva
a criação do "provedor do utente",
embora discordemos da sua nomeação ministerial,
dado não assegurar qualquer independência.
E não entendemos
que o seu mandato só tenha 3 anos, quando o presidente
do conselho directivo tem 5.
19.Consideramos positiva
a existência de um conselho consultivo.
Aliás, este tipo
de órgão existe nas referidas experiências
do Canadá e França, com a participação
das várias estruturas representativas de profissionais
de saúde.
O que se torna inadmissível
é atribuir ao conselho directivo a capacidade de
definir a sua composição. E é mais
escandalosa a possibilidade deste conselho nomear directamente
"personalidades independentes com saber e/ou experiência
no sector".
Quem define a independência
e quem avalia o saber?
20.No ponto 5.5. (Serviços),
na página 26, é traçada a perspectiva,
já por nós abordada anteriormente, de "criar
uma entidade reguladora o mais leve e ágil possível
sem a sobrecarga de serviços próprios muito
pesados".
Trata-se, sem dúvida,
de consagrar o recurso quase exclusivo a empresas privadas
para a realização, por exemplo, das auditorias
e avaliações, tornando a ERS prisioneira
de interesses que anulam as suas atribuições
e objectivos.
Como é possível
que a ERS cumpra os seus objectivos e atribuições
sem dispor de técnicos próprios para realizar
com independência as tarefas que decorrem do seu
estatuto legal?
Importa ter bem presente
as recentes declarações do Presidente do
Tribunal de Contas ao "Jornal de Negócios"
sobre esta delicada matéria.
São conhecidos os
escândalos de empresas de auditoria na Grã-Bretanha
que integram consórcios privados das P.F.I.s e
Parcerias Públicas-Privadas (PPP) e que depois
são contratadas para auditarem esses mesmos consórcios.
Ou seja, auditam-se a si
próprias.
É este um exemplo
de competição ou concorrência séria
e transparente?
Pretende-se copiar um modelo
destes? E em proveito de que interesses?
No mesmo parágrafo
deste ponto, consideramos curiosa a decisão de
colocar a Inspecção-Geral de Saúde
a cumprir os pedidos da entidade reguladora.
21.O artigo "Cooperação
de outras entidades e serviços" estabelece
um amplo conjunto de serviços que ficam obrigados
a responder às solicitações da ERS,
como se esta estrutura correspondesse a um segundo ministério
da saúde.
22.Finalmente, o último
ponto deste projecto (6. Procedimento legislativo) suscita-nos
uma total discordância ao considerar que "não
tem de se tratar de uma lei da Assembleia da República",
dado que "não assume a dimensão e a
relevância de uma das bases do SNS, nem parece que
haja qualquer norma na lei das Bases ou sequer no estatuto
do SNS que obstruem à criação da
nova entidade reguladora".
Achamos curiosa esta afirmação
peremptória, quando um dos autores do projecto
ainda há 2 anos defendia precisamente o contrário.
Será que mudou o
enquadramento legal e constitucional para justificar esta
nova posição?
O que é um facto
indiscutível é que esta entidade reguladora
não está formalmente prevista na Lei de
Bases de Saúde, lei esta aprovada na Assembleia
da República. E nem sequer se pode invocar o Estatuto
do SNS, tendo em conta que a ERS abrange não só
os serviços públicos como todos os outros
serviços prestadores de cuidados de saúde.
Por outro lado, quando
a opção é por um modelo de entidade
deste tipo, com uma vastidão de implicações
no próprio funcionamento de múltiplos serviços
ministeriais centrais, com funções "judiciais"
e beneficiando de uma importante percentagem de verbas
do orçamento público, a discussão
e aprovação pela Assembleia da República
tornam-se incontornáveis.
Mas mesmo que não
se colocassem quaisquer problemas deste tipo, a intervenção
directa da Assembleia da República torna-se indispensável
para garantir a efectiva credibilidade e independência
da ERS, como salientamos na apreciação geral.
III. Conclusões
1. A FNAM sempre
se manifestou favorável à criação
de uma regulação efectiva, transparente
e independente, visto que a “mão invisível”
do mercado carece da mão visível da regulação
pública.
Aliás, há
alguns anos atrás, quando foram implementadas as
"Agências de Contratualização"
a nível das A.R.S.s, saudámos esta medida
por representar um mecanismo embrionário de uma
regulação a nível dos serviços
públicos de saúde.
2. O modelo de entidade
reguladora consagrado neste projecto constitui uma super-estrutura,
quase um "super-ministério", que extravasa
amplamente as funções reguladoras e contraria
o âmbito de intervenção definido pelo
Ministro da Saúde, em torno dos "3 vectores",
na citada entrevista ao DN.
Podemos mesmo afirmar,
que a ERS torna dispensável a existência
do próprio Ministério da Saúde,
dado que os serviços centrais deste ministério
passam a estar dependentes das solicitações
desta entidade, havendo mesmo claros conflitos de funções
e respectivas competências legais.
O mesmo se coloca a nível
das Ordens.
3. A opção
por este modelo suscita-nos profundas preocupações
e discordâncias por se tratar de uma aplicação
mecânica de outras experiências, sem ter em
conta a enorme especificidade e delicadeza do sector da
saúde e por não salvaguardar várias
questões por nós enunciadas na Apreciação
Geral.
4. A forma de apresentação
deste diploma, sem artigos numerados, com comentários
sobrepostos ao articulado e sem um preâmbulo enquadrador,
só pode ser entendida como um "draft"
de trabalho, não tendo sequer respeitado o prazo
legal mínimo de 20 dias úteis para parecer
formal.
Nesse sentido, enviados
estes contributos, ficamos a aguardar a recepção
do projecto de diploma.
5. Por razões já
anteriormente expostas, torna-se indispensável
que este diploma seja aprovado na Assembleia da República,
bem como seja este órgão de soberania a
designar os elementos do conselho directivo e o Provedor
do Utente, à semelhança do que
se passa, há largos anos, com o Provedor de Justiça
e membros do Tribunal Constitucional.
Esta metodologia é
a única que permitirá garantir a efectiva
independência, credibilidade, transparência
e responsabilização democrática da
ERS.
6. Não é
admissível que a ERS não englobe
as farmácias e as Regiões Autónomas.
7. Não acreditamos
que um conselho directivo com a restrita composição
numérica de 3 elementos esteja em condições
mínimas para assegurar um tão vasto leque
de funções e competências.
8. As incompatibilidades
devem abranger, pelo menos, um período
de 5 anos e devem ser acompanhadas de uma declaração
formal de interesses.
9. Consideramos muito preocupante,
que ainda antes da ERS estar criada já
esteja a ser objecto de uma ostensiva acção
de condicionamento e esvaziamento das suas principais
competências por parte do Ministério da Saúde,
em torno dos contratos-programa para os hospitais S.A.,
além do ex,. recente do respectivo sigilo contratual
evocado pelo Ministro da Saúde.
Sendo estes contratos uma
área privilegiada de acção da regulação,
são inaceitáveis estas medidas ministeriais
de antecipação apressada para proceder à
sua imposição.
10. A enorme importância
desta matéria exige uma discussão séria
e cuidada, sem estar dependente de calendários
partidários como parece existir esse objectivo
com a divulgação do propósito ministerial
de implementar a ERS no próximo mês de Setembro,
aproveitando as férias parlamentares.
Nesse sentido, a FNAM
reafirma a sua clara disponibilidade negocial para dar
um importante contributo na definição de
uma ERS, que seja uma efectiva entidade reguladora e não
um instrumento partidarizado de aceleração
da política ministerial de destruição
do S.N.S. e de favorecimento privatizador dos
serviços públicos de saúde, à
custa do dinheiro dos contribuintes.
P'la Comissão
Executiva
Coimbra, 25/07/2003
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